Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição depois?

Na coluna deste mês, convidamos os pesquisadores Caio Santos e Monique Salerno, respectivamente, doutorando em Comunicação Social pela UFMG e mestra em Direito Internacional pela University of Kent, ambos pesquisadores da área ambiental, para responder qual seria uma lógica de uso adequada do ambiente para a coerente efetivação do Estado de Direito no Brasil. Como ponto de partida, questionei os pesquisadores se a lógica desenvolvimentista da ditadura militar seria compatível com o atual paradigma, através da máxima título desta coluna, pronunciada pelo general José Costa Cavalcanti: “Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição depois”.

Concluímos que a perspectiva desenvolvimentista que remete à exploração ambiental de forma explícita até as décadas de 1970-80 é incompatível com os requerimentos contemporâneos do Estado de Direito no Brasil. A lógica desenvolvimentista pré-redemocratização, de cunho profundamente extrativista e de teor praticamente colonial, ainda é imposta a vários empreendimentos públicos e privados no Brasil, violando frontalmente os pressupostos que o Estado brasileiro deveria observar.

À medida que o Estado de Direito se refere ao princípio de que o governo e as instituições devem operar dentro de um sistema legal bem definido, em que os direitos individuais são protegidos e os poderes do Estado são limitados, no contexto ambiental isso implica que a proteção do meio ambiente deve ser garantida através de estruturas legais, processos e mecanismos que assegurem a preservação ambiental, responsabilizem aqueles que causem danos ao meio ambiente e previnam ao máximo que tais danos sejam causados — protegendo o meio ambiente, as populações locais e regionais e até o ecossistema global.

Os primeiros diplomas que estabelecem a atual estrutura legal no âmbito ambiental são a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e na Constituição Federal, mais especificamente o Artigo 225, que dispõe sobre direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como essencial à qualidade de vida e que deve ser protegido não só pelo poder público, mas pela coletividade.

Esses instrumentos foram influenciados por uma série de tratados, convenções e movimentos internacionais relacionados ao meio ambiente que ocorreram ao longo das décadas anteriores à sua promulgação, como, por exemplo, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de 1972 em Estocolmo, que contribuiu para moldar uma consciência global crescente sobre a importância da proteção ambiental. Em digressão necessária, foi exatamente na Conferência de Estocolmo que o general Costa Cavalcanti pronunciou a infame frase que intitula o presente texto, desvelando a lógica da exploração ambiental no Brasil até aquele momento.

Nesse contexto, durante a redemocratização e o debate constituinte, o Artigo 225 foi extremamente influenciado pelas crescentes preocupações nacionais sobre o meio ambiente, bem como por movimentos sociais e ambientais que ganharam força no Brasil durante as décadas de 1970 e 1980, principalmente devido à mentalidade “desenvolvimentista” que predominou durante o período da ditadura militar brasileira. 

Como exemplos de grandes projetos de infraestrutura construídos nessa época, pode-se citar a Usina Hidrelétrica de Itaipu e a abertura da rodovia Transamazônica, que foram realizados sem uma devida avaliação dos impactos ambientais e sociais, resultando em danos significativos ao meio ambiente e às populações locais. 

A construção de Itaipu, por exemplo, resultou em danos significativos ao meio ambiente e às populações locais, incluindo o alagamento de uma superfície total de 1.350 km² e a formação de um lago com comprimento de mais de 170 km, além do desaparecimento do Salto das Sete Quedas, que eram consideradas as cachoeiras com o maior volume de água do mundo. Também foi marcada por violações de direitos humanos, com mais de 100 operários mortos e 43 mil acidentes.

Já a Transamazônica, construída no decorrer do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), foi uma obra de grande proporção que cortaria o Brasil no sentido Leste-Oeste. Além de inacabada, sua construção não teve estudo de viabilidade econômica ou de impacto ambiental — a legislação que introduziria mecanismos de avaliação de impacto ambiental e licenciamento de atividades poluidoras veio apenas em 1981 — que pudesse prever os danos socioambientais que seriam causados, entre eles graves violações de direitos humanos contra povos indígenas, que foram posteriormente investigados pelo Ministério Público Federal. 

Entretanto, mesmo após a consolidação da legislação ambiental brasileira, vários desastres socioambientais ocorreram. Dentre os desastres recentes, citamos a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, de 2011 a 2019, em proporções similares aos empreendimentos citados anteriormente. Atingidos pela construção da usina têm denunciado a violação de seus direitos humanos frente às atitudes da Norte Energia e do Estado Brasileiro. Inúmeros impactos socioambientais foram causados pela construção e funcionamento da usina, como a retirada forçada de várias comunidades ribeirinhas de suas casas e terras, sem a devida compensação

Assim, mais uma vez e já no novo paradigma de proteção ambiental inaugurado pela Constituição Federal, o governo brasileiro promoveu o projeto como grande fonte de desenvolvimento, mas não cumpriu essa promessa; o projeto se tornou, pelo contrário, fonte de prejuízos econômicos para os locais, e de desagregação de inúmeras comunidades tradicionais, que não foram propriamente consultadas antes da construção do empreendimento, originando até uma denúncia à ONU. Nesse contexto, resta clara a manutenção da lógica exploratória pré-redemocratização até os dias atuais.

O desenvolvimentismo, porém, não é exclusivo de empreendimentos estatais. Em nome do progresso e da geração de riquezas, a iniciativa privada se mostrou tão ou até ainda mais destrutiva que o próprio Estado. Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, os subsequentes governos Michel Temer e Jair Bolsonaro buscaram “expandir a fronteira” do extrativismo agrícola e mineral. Sob a desculpa de atrair capital estrangeiro, iniciou-se uma desmontagem agressiva da política ambiental, isentando o Estado de suas obrigações constitucionais e precarizando a já frágil fiscalização e responsabilização de empresas por seus potenciais impactos ecológicos.

No caso da mineração, essa complacência do Estado ocorreu ao mesmo tempo em que havia uma queda brusca dos preços do ferro e manganês no mercado internacional. Buscando manter a lucratividade em um cenário de desvalorização de suas commodities, as corporações mineradoras tentaram maximizar a produção e minimizar seus custos, o que implicou em cortes em segurança e sustentabilidade. Neste contexto, as barragens de rejeito, usadas para reter resíduos da mineração, se tornaram cada vez mais negligenciadas. Em 2022, 129 barragens privadas se encontravam em estado crítico em todo o território nacional.

Esta conjuntura proporcionou o rompimento da Barragem de Fundão, no município de Mariana (MG). O desastre liberou 55 milhões de metros cúbicos de lama, matando 19 pessoas, destruindo os vilarejos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo e deixando mais de 300 mil atingidos. Considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil, a tragédia serviu apenas de prelúdio para o que é considerado o maior desastre do trabalho, quando outra barragem se rompeu, desta vez em Brumadinho, a menos de 150 km de Fundão. Apesar dos danos ambientais serem relativamente menores, houve muito mais perdas humanas: 270.

Esse sucateamento atingiu seu apogeu com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência. Eleito sob uma plataforma de extrema-direita que abertamente prometia liberar extrativismo em áreas reservadas, Bolsonaro foi além da flexibilização da legislação ambiental: na prática, ele a tornou inexequível. Após a tentativa fracassada de extinguir o Ministério do Meio Ambiente, Bolsonaro nomeou Ricardo Salles para a pasta com a missão de sistematicamente cercear o dever do Estado com o ambiente. 

A partir de um arrocho de verbas, esvaziamento de quadros técnicos e sua substituição por pessoas desqualificadas, majoritariamente militares, Salles efetivamente paralisou órgãos responsáveis pelo combate ao desmatamento e à preservação de recursos ambientais. Este processo de, nos termos da ministra Cármen Lúcia, “cupinização democrática”, em que as próprias instituições são consumidas desde dentro, possibilitou o maior crescimento percentual do desmatamento na Amazônia em um único mandato presidencial.

A terceira presidência de Lula mostra um resgate ao compromisso ambiental do Estado. O retorno de Marina Silva ao comando do MMA já rendeu frutos, conquistando uma redução expressiva do desmatamento nos primeiros meses de governo. No entanto, o raciocínio extrativista, que vê a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente como obstáculos para o desenvolvimento, segue forte no Brasil, ecoando em Brasília. 

A bancada ruralista, que domina mais de metade do Congresso nacional, procura não só assegurar retrocessos, esvaziando as pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, mas almeja atropelar conquistas históricas com a aprovação do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Na prática, o projeto de lei revoga as delimitações estabelecidas depois do ano de 1988, o que representa cerca de 63% das reservas estabelecidas ou em disputa — em claro paralelo ao caráter quasi-colonial da lógica extrativista pré-democrática. 

De tal forma, mesmo dando protagonismo estratégico à questão ambiental, o governo atual não está imune do desenvolvimentismo retrógrado que marca o Estado brasileiro. Recentemente, um parecer técnico do Ibama causou polêmica por paralisar uma perfuração teste de petróleo por identificar sérios riscos ambientais na foz do rio Amazonas, uma área de extrema sensibilidade socioambiental. Em audiência pública na costa do Amapá, o líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) atacou o presidente do órgão pela decisão, Rodrigo Agostinho, chamando-o de  “burocrata de olhos claros”, enquanto aliados defendem que ele substitua Marina Silva no MMA. 

Em conclusão, inicialmente, é possível observar diversos paralelos entre a lógica desenvolvimentista das décadas de 1970-80 com a forma de exploração ambiental no Brasil contemporâneo, como ocorre nos diversos exemplos citados — de responsabilidade pública e privada. Na realidade, como sabemos, a lista é muito maior e optamos por apresentar apenas alguns casos paradigmáticos que ilustram a tendência. Por outro lado, é possível falar em alguns passos em direção a uma perspectiva adequada aos requerimentos do Estado democrático de Direito brasileiro. Entretanto, é necessário ir além de encontros e promessas e passar a cumprir, desde já, uma promessa feita ao meio ambiente brasileiro em 1988, se de fato houver interesse em reparar danos passados e evitar violações futuras, pois já não é mais tempo de “pagar os custos depois”.